sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Linguagem e pensamento: as minhas memórias e a forma como eu interpretava o mundo

Inicio do século XXI. Eu tinha por volta dos meus 8/9 anos, eu estava de férias em Bombinhas, Santa Catarina, na casa da minha falecida bisavó materna. Um dia, eu estava assistindo uma novela junto com o restante da minha familia. Eu lembro de observar, muito atentamente, a televisão. Mesmo concentrado naquelas imagens, eu não conseguia entender nada: o contexto da cena ou os diálogos. Por muito tempo eu fiquei intrigado com este fato, por eu ser incapaz de interpretar ou entender coisas que, hoje em dia, não me trazem nenhum desafio para compreender. Mesmo que hoje, eu quisesse gozar desta dádiva de não compreender uma cena de uma novela, eu seria incapaz de fazê-lo. Só pelos diálogos, eu sou capaz de compreender, minimamente, o contexto, e a intenção dos personagens, e o que eles estão dizendo. Essa lembrança do passado me traz nostalgia, quando a experiência de assistir novela era algo tão imagético, lúdico, misterioso. Essa mesma experiência, agora, só traz agonia e infelicidade por causa daquela forma dramática saturada e questionável, tornando impossível assistir um episódio inteiro. 

Amiúde, afirmamos que não somos capazes de lembrar dos nossos primeiros anos de vida. Isto se deve, creio eu, ao fato de que a memória só é possível em condições sociais e históricas muito especificas, sendo uma delas, o domínio da linguagem e do pensamento. Antes de começarmos a desenvolver nossa linguagem e nosso pensamento, nós não estamos dando significado e sentido ás nossas experiências e vivências. Nós só estamos ali, vivendo, respirando, comendo, e satisfazendo as necessidades mais básicas sem conferir qual quer significado a estas coisas. Antes de começar a apreender a linguagem, e de se utilizar de um sistema de signos que dê significado ao real, nós só existimos, não como seres pensantes, mas como animais pré-racionais, numa fase pré-intelectual (KAULFUSS, p.8). Eu não sou um pesquisador em pedagogia, ou na área do desenvolvimento humano, mas sei que as crianças passam por etapas de desenvolvimento (Piaget, Vygotsky), que se relacionam, de alguma forma, ao estágio de seu desenvolvimento intelectual e semiótico. Eu consigo interpretar o mundo a partir das ferramentas que eu possuo naquele momento. 

Minha memória mais antiga é do meu primeiro dia na creche, quando eu tinha 4/5 anos. Neste dia, tomado pelo desespero, eu chorei muito. Eu estava só começando a desenvolver meu intelecto e linguagem, mas eu já era capaz de dar significado as sensações e emoções que eu estava sentindo: medo, temor por deixar o meu lar, longe de minha mãe, para ficar ali. 

No exemplo que eu dei da novela, provavelmente, o meu estágio de desenvolvimento permitia apenas interpretar, superficialmente, as imagens ao meu redor. Eu precisaria desenvolver mais o meu intelecto, e meu sistema semiótico (linguagem), para que um dia as cenas de novelas se tornassem enfadonhas e horrendas. 
 
Fonte:

KAULFUSS, Marco Aurélio. Vygotsky e suas contribuições para a Educação.

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